Essa é uma agenda coletiva para a construção de um futuro em comum, organizada pelo Instituto Marielle Franco, com o apoio da APonte e a colaboração de cerca de 100 organizações.
Acreditamos que as práticas e as políticas defendidas e construídas por Marielle Franco e aqui sistematizadas podem ajudar a enxergar um futuro possível para o momento tão sombrio que a política brasileira enfrenta, que se acirra desde seu assassinato em 2018.
Aqui estão reunidos alguns destaques que consideramos importante ressaltar, mas entendemos que esta agenda está em permanente construção e movimento, assim como estava Marielle e sua práxis política. Esperamos poder produzir e divulgar futuramente versões atualizadas da Agenda Marielle, e convidamos todas as organizações, movimentos e ativistas a também seguirem elaborando e formulando suas próprias propostas.
A seguir, apresentamos os objetivos programáticos gerais e as propostas pragmáticas voltadas ao Poder Legislativo Estadual priorizados em cada Eixo. Também elaboramos uma carta voltada para candidaturas à Presidência da República. Confira os eixos abaixos e baixe a carta.
Para alcançar justiça econômica e social com verdadeira equidade de gênero e raça, é necessária uma transformação estrutural do sistema econômico, tributário e fiscal, de modo que este passe a atender às necessidades de produção da vida humana em detrimento da produção de lucro para o capital. O momento histórico em que vivemos, lastreado pelo caos climático, exige, com urgência, que nossos padrões de consumo e produção e o uso de todos os recursos naturais – do ar à terra, dos rios, lagos e aquíferos aos oceanos e mares– seja não só sustentável, mas respeitoso para com a natureza e os povos das águas e florestas. Além disso, é preciso reestruturar as instituições públicas através de uma lógica antirracista e antissexista, capaz de combater a concentração de renda e as históricas desigualdades sociais.
Marielle acreditava que a produção de lucro não deve estar acima da vida das pessoas, e que o combate à exploração e à expropriação de trabalhadores e trabalhadoras é dever do Estado. Para Marielle, este debate paira na noção de que é possível um mundo novo, onde não haja separação entre os seres humanos e a natureza. Um mundo livre da alienação, livre de desigualdades, e no qual não será mais necessária a luta para a erradicação da pobreza e da fome, pois estas deixarão de ser produzidas por um sistema predatório e colonial. Um mundo em que o desenvolvimento e a aplicação da tecnologia são sensíveis ao clima, respeitam a biodiversidade e a diversidade de culturas. Um mundo em que a humanidade vive em harmonia com a natureza e em que animais selvagens e outras espécies vivas estão, de fato, protegidos.A luta por justiça racial e pelo direito à vida foram partes centrais da trajetória de Marielle Franco enquanto mulher negra favelada, defensora de direitos humanos e vereadora socialista. Marielle denunciava que a escolha da atuação feita pelo Estado nas favelas e periferias seguia uma lógica racista e colonial, e que, portanto, não era centrada na prerrogativa da garantia de direitos e do respeito à vida. Marielle acreditava que é preciso uma profunda reforma estrutural que combata a militarização, a ocupação militar dos territórios periféricos e o encarceramento em massa enquanto principais ferramentas da política pública de segurança. Para ela, é preciso desmontar a narrativa de fomento ao Estado Penal, que aplica uma política voltada para a repressão e controle da população pobre, negra e indígena, encarcerando jovens negros todos os dias sob o discurso de combate à "guerra às drogas”.
Entendemos ser impossível pensar uma política de segurança pública verdadeiramente cidadã de forma desconectada da questão racial. A luta por justiça racial precisa estar no cerne da política de segurança pública. É preciso alterar o modelo sustentado na polícia por outra prática, com transparência, controle popular e democrático, e uma nova visão de sociedade e proteção sustentada na garantia de direitos e na proteção à vida como prioridade absoluta. Uma política preventiva, que se traduza em políticas de memória e reparação para a população negra e indígena, para uma agenda de desencarceramento e para o fomento de oportunidades de trabalho a jovens de periferias e favelas.Marielle sabia que o exercício pleno dos direitos sexuais e reprodutivos é condição inegociável para uma democracia sólida e para uma cidadania verdadeira, e que a diversidade sexual e de gênero deve ser celebrada como uma riqueza do nosso povo e da nossa humanidade. A justiça reprodutiva potencializa o olhar sobre os direitos sexuais e reprodutivos ao trazer a justiça social e os direitos humanos para o centro do debate, entendendo que a capacidade de uma mulher em determinar seu destino reprodutivo está diretamente relacionada às condições em que sua família e comunidade vivem. Assim, a garantia de justiça social, acesso à renda, educação, saúde, habitação, proteção social e segurança pública são condições imprescindíveis para o exercício da liberdade reprodutiva.
A pandemia aprofundou a discussão sobre as desigualdades de gênero que se reproduzem no espaço doméstico, sobretudo a divisão desigual das tarefas de cuidado. Na Agenda 2022, reforçamos nosso comprometimento com a justiça sexual e reprodutiva, como um compromisso ético de proteção à vida das mulheres negras, indígenas, bissexuais, lésbicas, transexuais e travestis, homens trans, pessoas que vivem com HIV, pessoas com deficiência, meninas e idosas, e tantos outros grupos que são historicamente as principais vítimas de violações de direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, entrando de forma cruel nas estatísticas de mortes por aborto inseguro e esterilização forçada. A luta por justiça reprodutiva e pelo respeito à diversidade sexual e de gênero é a luta pelo bem-viver e pela democracia. Os ataques sistemáticos aos direitos sexuais e reprodutivos, longe de serem exclusivamente cortina de fumaça, são parte central da política de morte e autoritarismo que violenta a esfera pública brasileira. Portanto, o fortalecimento das normas e das políticas que garantem os direitos sexuais e reprodutivos e a diversidade sexual e de gênero também são uma estratégia potente de retomada dos mecanismos democráticos para a construção de um outro futuro.Marielle Franco era uma mulher favelada, nascida e criada na Maré, no Rio de Janeiro, e por acreditar na potência de suas esquinas, becos e vielas, fez de sua mandata política um instrumento de denúncia das violações de direitos nas periferias. O compromisso com a Agenda Marielle Franco de 2022 é o compromisso com as comunidades faveladas, periféricas e seu direito à cidade e, ao mesmo tempo, o repúdio a toda e qualquer política que reduz a favela e a periferia a um território de guerra contra as drogas e reproduz discriminação e estigma contra seus moradores.
O direito à cidade deve ser compreendido não só pelo acesso à infraestrutura plena em contexto urbano, como pelo acesso à qualidade de vida e ao bem viver. O acesso equitativo de todas, todos e todes ao lazer, ao uso dos espaços públicos, a mobilidade urbana, a uma cidade ecologicamente equilibrada e ao uso de equipamentos sociais e públicos que canalizem essas necessidades é um direito humano internacionalmente reconhecido e assegurado pela Constituição brasileira. É papel do Estado garantir que sejam territórios onde a vida pode ser vivida com dignidade, com acesso à água, saneamento básico, transporte público, educação, saúde e lazer. Na conjuntura em que vivemos, efetivar o direito à cidade para todas e todos depende de investimentos em infraestrutura guiados no sentido de uma transição agroecológica da economia.O direito à saúde no Brasil é fruto de intensas lutas sociais, em especial o movimento brasileiro pela Reforma Sanitária. Há mais de trinta anos, esse direito se efetiva por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) que, a despeito dos enormes desafios em termos de execução e orçamento, é uma referência global em política de saúde, em um país com um território de dimensões continentais. Marielle Franco fez parte da Comissão de Higiene, Saúde e Bem-Estar da Câmara de Vereadores, entendendo que, na organização do SUS, o município é responsável pela execução das ações e serviços de saúde no âmbito municipal e parte do esforço fundamental pela garantia do direito à saúde da população.
O Brasil foi, por meses, o epicentro da pandemia no mundo e viveu outras emergências de saúde paralelamente, como os altíssimos índices de morte materna por COVID-19, da qual também foi o epicentro a nível mundial. O compromisso com a Agenda Marielle Franco 2022 implica trabalhar pela escalada do financiamento do SUS, sobretudo na atenção primária, para viabilizar, como preconiza a Constituição Federal, sua universalização, com acesso equitativo. A pandemia de Covid-19 não foi a primeira nem será a última emergência em saúde a nos pôr em alerta e não podemos esperar por colapsos no SUS para implementar medidas que enfrentem a precarização de suas trabalhadoras e trabalhadores e o sucateamento da infraestrutura e tecnologia. Essa é uma missão que deve ser assumida agora, em resposta ao luto que vivemos e em memória de todas as pessoas vítimas do vírus e do descaso do Estado.O compromisso com a Agenda Marielle Franco 2022 implica posicionar-se em prol da educação de qualidade, integral e transformadora, capaz de reerguer nosso país, celebrando a diversidade, incluindo as pessoas com deficiência, promovendo senso crítico e consciência ambiental e social e garantindo segurança alimentar, acesso à lazer, esporte e cultura. Uma educação que reconhece e acolhe os saberes populares e tradicionais e valoriza a ciência e as artes. Um país comprometido com a educação constrói uma relação mais saudável com seu passado e presente, rumo a uma consciência coletiva emancipadora, crítica e democrática.
A valorização de todos e todas as profissionais da educação precisa se converter em melhores salários e condições dignas de trabalho. O projeto de educação que defendemos não se curva à segregação territorial de classe e raça e promove educação pública e de qualidade de maneira equitativa nas favelas, nas unidades socioeducativas, nas comunidades ribeirinhas, quilombolas, indígenas, rurais e urbanas, com respeito às particularidades culturais e étnicas dos povos e a valorização e integração de seus saberes tradicionais e línguas. O acesso à educação deve ser garantido de maneira capilarizada, comunitária e popular, e todas as crianças, adolescentes e jovens devem se sentir representados nos materiais didáticos e no conteúdo escolar. O compromisso é com o enfrentamento da (re)produção de violências LGBTfóbias, de gênero e racistas nos espaços educacionais, além da promoção de memória e justiça ao povo negro, através do ensino da cultura e história afrobrasileira como estabelece as leis 10. 639/03 e 11.645/08.O compromisso com a presente Agenda implica trabalhar para assegurar a preservação do nosso patrimônio cultural material e imaterial, fortalecendo os órgãos necessários, assegurando orçamento compatível, ampliando e democratizando o acesso aos incentivos e subsídios culturais, fortalecendo os conselhos, planos e fundos culturais a nível estadual e municipal e criando legislação específica de proteção social e previdenciárias aos milhões de trabalhadores da cultura, implementando medidas de auxílio emergencial para enfrentar a precarização da categoria pós-pandemia.
Cultura é memória, é resistência, é expressão de nossa ancestralidade. Está presente não só nas manifestações artísticas, mas na gastronomia popular, nas diversidade linguística e nas religiões de matriz africana e indígenas. Neste sentido, é também uma política no âmbito da cultura e da memória, debater e combater a intolerância religiosa, praticada majoritariamente contra os adeptos das religiões de matriz africana. A religiosidade é uma característica fundamental em várias culturas do povo brasileiro. Acreditamos no papel do Estado em garantir a liberdade religiosa, permitindo igualdade na expressão cultural da rica pluralidade religiosa existente no nosso país. Propomos uma nova política cultural que prima pela diversidade, a autonomia e pela proteção e preservação da memória negra, indígena e periférica. O fortalecimento dos Fundos de Cultura, geridos por conselhos deliberativos, numa parceria entre o poder público e a sociedade civil organizada, é uma de nossas metas na criação de uma democracia mais justa e plural.A expropriação do direito à terra é a violência mais antiga da história do Brasil. Somos um país fundado pela invasão de territórios indígenas e pela imposição de um modelo agrícola e extrativista, voltado para a produção de lucro e a atender as demandas do mercado externo antes das necessidades do povo. A pandemia de Covid-19, consequência justamente de como lidamos com a natureza e a produção de alimentos em um mundo neoliberal, revelou muitos desses aspectos e os cientistas alertam para a possibilidade de surgimento cada vez mais frequente de pandemias como esta.
Embora sejamos um país com capacidade agrícola imensa, rica diversidade de fauna e flora, alto potencial de produção de energias sustentáveis e casa para biomas essenciais para a vida humana, incluindo a maior floresta tropical do mundo, falhamos sistematicamente em proteger nosso patrimônio ambiental. São inúmeras as proposições legislativas hoje que visam restringir direitos dos povos indígenas, inclusive no sentido de reverter a demarcação de terras já demarcadas e barrar processos de demarcação novos ou em curso. É preciso barrar imediatamente esses projetos de lei (PLs) e propostas de emenda constitucional (PECs).
É chegada a hora de mudar radicalmente esse rumo, com a rejeição de toda e qualquer iniciativa legislativa que atente contra a proteção ambiental e de povos tradicionais, fortalecimento dos órgãos de proteção e controle, reversão de todos os retrocessos dos últimos anos e compromisso total com o desmatamento zero em todos os biomas brasileiros e redução significativa na emissão de gases de efeito estufa. A produção agrícola familiar, que hoje alimenta este país, deve ser prioridade nas políticas de agricultura e segurança alimentar, com o compromisso de reduzir, regular e fiscalizar e uso de fertilizantes sintéticos, agrotóxicos, e transgênicos, trabalhando para sua eliminação.
Como mulher negra e favelada, Marielle defendeu esta pauta direta e indiretamente, seja no apoio explícito à luta dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, ou no atendimento à Defensores de Direitos Humanos da Terra e do Meio Ambiente enquanto foi membra e coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ).